segunda-feira, 10 de março de 2014

Requiescat in pace


O perfil era forte. Dominado por nariz levemente adunco, o magro rosto transmitia força e tênue beleza, que nem a morte lhe roubara. A janela, por atrás, dava-lhe  luminosidade e contraste.

Dona Isadora morrera ha dois dias. Vivera boa e longa vida, sem ver filho morrer. Só o marido lhe antecipara. Mas o esticar dos anos tornou-a solitária, filhos e netos dispersos por interesses diversos. Não mais se apegava à pálida rotina da sobrevivência.

Era temente a Deus, pois antecedia de muito a era da contestação. Nascera Católica por convenção, mas abraçou o seu Deus por convicção. Acreditava Nêle. É verdade que também temia as labaredas do inferno, a peçonhenta face de Satanás, as sombras dos condenados. Porém, nem mesmo o turbilhão da adolescência a fez duvidar, desdenhar. Sim, foram muitas as tentações, pois fora moça bonita. Cedeu, sim, cedeu a algumas, pecou com parcimônia, mas sem que perdesse o respeito próprio. Compreendia que ser humano é ser fraco, é pecar, mas sem dobrar-se à fraqueza, sem nela buscar o pretexto. Encontrou na compreensão, no entender o outro, o caminho da bondade e da concórdia.

Reclinada em belo ataúde, sobre macia almofada e estreito leito, recebia as despedidas de tantos queridos. Após a benção do Padre, fez-se o silêncio. Se olhos tivesse, sua alma não entenderia o que lá fazia. Como não estar perto dos amores que antes se foram? Estenderia a mão em busca fútil?

Tal qual surdo zumbido de besouro, a maquina alerta para sua presença e implacável determinação. Em vez de mãos, o féretro é levado por mecânica esteira. Põe-se em lento movimento. É curto caminho. Leva, devagarzinho, Dona Isadora para as labaredas.


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