Joaquim
Francisco de Carvalho *
É
escusado insistir em que eletricidade é um insumo vital para a
indústria, comércio, transportes, universidades, residências,
escolas, laboratórios, hospitais, enfim, para tudo. Energia é vida.
E,
como todas pagam tarifas, o setor elétrico é uma espécie de
“coletor automático” de uma boa parte da renda nacional.
Coletor, aliás, muito mais eficiente do que o fisco, porque as
contas de eletricidade são pagas implacavelmente, sob pena de corte
do fornecimento, enquanto os impostos podem ser parcialmente (quando
não totalmente) sonegados, graças à manigância de contadores
ardilosos.
Talvez mal avisado por seus conselheiros, ao assumir a
presidência da república, o honrado Fernando Henrique Cardoso
anunciou que adotaria o “modelo britânico” na privatização do
sistema elétrico, ignorando que tal modelo não é aplicável no
Brasil.
De
fato, o parque gerador britânico é termoelétrico, enquanto o
brasileiro é preponderantemente hidroelétrico.
E
reservatórios hidroelétricos pressupõem usos múltiplos, que
requerem pesados investimentos em programas de regularização de
bacias hidrográficas, controle de enchentes, preservação da fauna
ictiológica, proteção dos solos e da flora ribeirinha, irrigação
de terras agrícolas, construção de hidrovias e outros, quase todos
deficitários para o empresário privado, embora sejam indispensáveis
para o equilíbrio ambiental, para desenvolvimento econômico e para
o bem-estar da sociedade, como um todo.
Por
isso as empresas elétricas públicas reservavam fatias importantes
de seus orçamentos para investimentos em programas dessa natureza.
Era assim que faziam a CESP, a CPFL e a Eletropaulo, quando eram
estatais paulistas.
Privatizadas,
elas agora extraem máximos lucros para remeter a seus acionistas
(quase sempre no exterior), deixando com o Estado a responsabilidade
de investir nos programas ambientais, o que, evidentemente,
compromete recursos que deveriam ir para a expansão e modernização
do próprio sistema e para a área social (educação, saúde,
habitação popular, segurança pública, etc.).
A
importância do controle público sobre as bacias hidrográficas é
tal que até nos Estados Unidos, onde quase tudo é privado, as
principais hidroelétricas são controladas por empresas públicas
regionais ou federais e até pelo Exército.
O
governo FHC alegava que, sem privatizar as empresas de eletricidade,
o Estado não teria recursos para investir os 8,5 bilhões de reais
(da época) previstos para atender à expansão da demanda de
eletricidade até 2004.
Mas
os fatos mostraram que isso não era verdade. O sistema elétrico
regrediu com as privatizações: os controladores privados das
antigas estatais, ávidos por lucros, não fizeram os investimentos
previstos para a expansão da capacidade, comprometendo seriamente a
confiabilidade do sistema (o risco de deficit
saltou dos 5% com que trabalhava o sistema público, para mais de
15%), enquanto as tarifas - que eram acessíveis até para a
população mais pobre - estão hoje entre as mais caras do mundo.
A
situação geral do país também se agravou, embora o governo
afirmasse que, com a receita das privatizações, a dívida pública
seria reduzida e que, sem o ônus de administrar empresas estatais, o
governo poderia concentrar recurso nos chamados programas sociais. O
resultado foi o oposto do prometido: sob a administração FHC a
dívida interna saltou de R$ 58 bilhões para mais de R$ 550 bilhões,
o endividamento externo passou de US$ 112 bilhões a US$ 380 bilhões,
a saúde pública, o ensino básico e a pesquisa científica ficaram
à míngua, aumentou o desemprego, o valor aquisitivo dos salários é
ridículo e a violência é o que se vê.
Entretanto
as remessas de lucros, que eram de US$ 750 milhões, chegaram perto
de US$ 8 bilhões, por ano.
Dourar
a pílula das privatizações com uma ilusória “pulverização de
ações” não mudou nada:
no Brasil, o mercado de ações é fraco e desmoralizado.
Para terminar, assinalo que - com as atuais tarifas - o faturamento do sistema elétrico brasileiro está à volta de R$ 200 bilhões, por ano. Esse faturamento deverá subir muito, pois a ANEEL não tem poder, nem competência, muito menos vontade política para controlar nada.
Por
outro lado, como o sistema é preponderantemente hidroelétrico
(funciona com a potência da água que corre em nossos rios, sem
consumir combustíveis) e as usinas estão quase todas contabilmente
amortizadas, os custos de geração são baixíssimos e o lucro
líquido do sistema verticalizado (geração, transmissão e
distribuição), pode chegar a 50% do faturamento. Com as elevações
de tarifas previstas para o futuro próximo, tais lucros poderão
superar R$ 100 bilhões, por ano.
As
empresas do sistema foram construídas com dinheiro público e
funcionavam muito bem. Não houve razão plausível para entregar seu
lucro (que de justiça deveria ser reinvestido na área social e no
aperfeiçoamento e expansão do próprio sistema) a especuladores,
corretores e banqueiros, sejam eles nacionais ou estrangeiros.
E
tudo isso piorou muito nas administrações do PT, porque aí entrou
a corrupção em escala nunca vista, nem mesmo por aqui.
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Joaquim
F. de Carvalho, engenheiro nuclear, licenciado em física e doutor em
energia, foi coordenador do setor industrial do Ministério do
Planejamento, diretor
da NUCLEN (atual Eletronuclear) e engenheiro da CESP.
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