sábado, 18 de março de 2017

EUA, China e Rússia: um novo quadro estratégico

Esta coluna publica, com especial prazer, as observações do Embaixador Luis Felipe Seixas Correa a respeito da ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos e suas repercussões internacionais.


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A política é surpreendente. A vitória de Donald Trump nas recentes eleições presidenciais americanas comprova a imprevisibilidade do futuro. Ele teve a intuição de aproveitar o ressentimento acumulado nos últimos anos, tanto dos setores do big business norte-americano, indústria, comércio, finanças, com as políticas postas em prática pela Administração Obama, quanto da classe média baixa e branca, e logrou seu objetivo com muita clareza. Seu discurso de posse revela uma acentuada dose de voluntarismo. Muitas palavras, muitas generalidades, pouca ou nenhuma indicação de como poderá implementar os seus desígnios. Fica a sensação de que Trump advoga uma espécie de nacional-capitalismo, e fica a preocupação de que poderá provocar conflitos e confrontos dos Estados Unidos no mundo. Seu lema, America First, é algo que não condiz com o discurso político do Pós-Guerra, nem com a Carta da ONU, que estabelece o Princípio da Igualdade Soberana das Nações. São intenções que se cumprem, mas que não se enunciam, jamais, assim tão claramente. 

O que pensam os adeptos de Trump é que a política externa do Governo Obama caracterizou-se por uma retração da presença norte-americana no mundo, pela aversão ao emprego do poderio militar, pela redução dos gastos com Defesa, pela rejeição da tradicional ideia de serem os Estados Unidos uma força moral no mundo, pela busca de algum diálogo com o mundo islâmico e pela tentativa permanente de evitar que crises internacionais perturbassem a promoção da agenda doméstica do Governo Obama, que sempre foi a sua prioridade. 

É verdade que a política externa conduzida por Obama terá sido aproveitada pela Rússia e Putin pôde assumir a liderança em todas as frentes geoestratégicas de seu interesse, principalmente na Europa do Leste e no Oriente Médio. É também certo que a retirada das forças norte-americanas do Iraque, que já se encontrava razoavelmente pacificado e sob a influência direta dos Estados Unidos, criou um vácuo, que veio pouco depois a ser preenchido pelo ISIS e pelo Irã. Ao Irã, Obama proporcionou a preservação do seu programa nuclear e o fim das sanções, o desbloqueio dos bens. Portanto, com uma significativa vantagem estratégica e econômica para os iranianos. Na Líbia, a interpretação liderada pelos Estados Unidos, mas liderada na expressão muito interessante que passaram a usar, to lead from behind, liderada por trás, pelos Estados Unidos, gerou também um vácuo que veio a ser ocupado pelo ISIS. E, eu ouvi também esse comentário em recente viagem pelos Estados Unidos, muita reação ao reatamento com Cuba, que terá dado sobrevida e prestígio renovado ao castrismo, alentando a esquerda latino-americana, justamente no momento em que se encontra combalida pelo enfraquecimento de suas posições no Brasil, na Argentina, na Bolívia e pelo progressivo esfacelamento da Venezuela. 

Diante dessas preocupações, não é de estranhar que o apoio da franja mais nacionalista dos Democratas tenha se sentido defraudada, tanto mais porque a candidata do partido, Hillary Clinton, tendo sido Secretária de Estado, foi considerada a responsável por esses, que muitos consideram erros cruciais da política do Obama. Não creio que essa propalada interferência russa nas eleições norte-americanas seja mais do que um bode expiatório lançado pelos Democratas para justificar a derrota e constranger Trump. Trump já declarou, repetidas vezes, que não tem motivos para antagonizar Putin, mas negou maior proximidade com o presidente russo. Na prática, pode-se prever que tenderá a manter boas relações com a Rússia, principalmente em torno daquela que será a prioridade da política externa norte-americana no seu início, o combate ao terrorismo islâmico. A cooperação com a Rússia é indispensável para esse objetivo, mas dificilmente se tratará mais do que uma aliança tática em um teatro definido, e, sobretudo, uma “afinidade”, entre aspas, que enfraquece a União Europeia e protege a Rússia de novos episódios como a Ucrânia. 

Trata-se, sob todos os aspectos, de uma aproximação, creio eu, que é surpreendente, mas que não deixa de ter motivações táticas. Putin é um líder forte, que traz consigo duas heranças também fortes, a do comunismo, que acabou, e a da antiga Rússia Imperial, que não acabará jamais. Seu comportamento atualmente vai pelo lado da Rússia Imperial, algo que ficou evidente na reação à tentativa da Aliança Ocidental de cooptar a Ucrânia e chegar perto demais da Rússia. Mutatis mutandis, foi o que aconteceu inversamente na Crise dos Foguetes de Cuba, onde os Estados Unidos traçou uma linha dura e se preparou para um conflito nuclear com a então União Soviética. Os Estados Unidos ganharam no conflito de Cuba e a Rússia ganhou na Ucrânia. Ambas as crises demarcaram os limites a que podem chegar as ameaças a uma e outra superpotência nuclear. 

Trump, por sua personalidade, parece entender bem esse tipo de reações. Veio praticando ao longo de toda sua vida uma espécie de capitalismo agressivo, que ataca até o momento em que percebe os limites da força do competidor. Vai seguir, muito provavelmente, essa norma nas relações com a Rússia de Putin, que, diga-se de passagem, com o lento desgaste da Sra. Merkel, é hoje, talvez, o único grande líder europeu, independentemente do que possamos pensar das suas políticas. Mais recentemente, seu envolvimento no conflito da Síria revelou determinação e capacidade de arregimentar forças para buscar transformar uma realidade que ameaçava os interesses estratégicos da Rússia. Eu acho que a evolução das relações entre os Estados Unidos e a Rússia dependerá, fundamentalmente, de como progrida a luta contra o terrorismo islâmico. Se o ISIS for derrotado pelos dois países em coordenação, virá a questão da partilha das esferas de influência na Síria e no restante da região, e muitas outras situações que poderão colocar os dois partidos, os dois países, em situações opostas. 

Pelo que eu pude observar, em conversas com diversos interlocutores em recente viagem aos Estados Unidos, há duas correntes de opinião entre os eleitores republicanos de Donald Trump. Uns esperam que ele seja na Casa Branca o Trump de sempre: radical, agressivo, movido por suas próprias opiniões, centralizador e convencido de que a distância entre a administração pública e os grandes negócios é muito reduzida: um capitalista clássico! Outros acreditam que a fanfarra de campanha não passa de fanfarra de campanha mesmo e que, no poder, Trump será contido pelo establishment do Partido Republicano: direita sim, ma non troppo! Outros ainda acreditam que o vice-presidente Mike Pence, por seu tino político e seriedade, seria uma garantia de que, na hipótese de um eventual impeachment de Trump, não haverá necessidade, como houve no caso de Nixon, de se afastar o vice e eleger outro. 

Em recente artigo no New York Review of Books, encontrei uma apreciação notável: “Trump é um improvisador, um ator, um criador de novas realidades, um homem prejudicado pelo seu próprio narcisismo, um músico, um dançarino mágico. Nem ele mesmo sabe ou pode imaginar o que vai acontecer”. Isso, para o presidente do país mais poderoso do mundo, é muito mais do que preocupante: é assustador! Minha impressão é de que, tanto os Republicanos quanto os Democratas oscilam entre um e outro ponto de vista. Alguns otimistas, outros menos. Muitos pessimistas, uns poucos menos. Todos, porém, parecem acreditar que boa parte da vitória de Trump derivou da reação negativa à personalidade de Hillary e aos pontos obscuros de certas práticas do casal Clinton. Muita gente acredita que Joe Biden teria ganho. O que se pode perceber é uma imensa ansiedade. Para onde vai o país? Como liderar o chamado “mundo livre” com uma dose intensa de radicalismo personalista? Como será Trump capaz de se relacionar com o mundo, com as lideranças nacionais na Europa, na Ásia, e na América Latina? 

Um enorme problema para Trump será a China, outra das facetas que devemos abordar nesse encontro e sua iniciativa de falar pessoalmente com a Presidente de Taiwan foi um expresso desafio ao equilíbrio das relações entre os dois países. Um gesto que havia sido negociado com o lobby de Taiwan em Washington, liderado pelo ex-senador e ex-candidato a presidente republicano, Robert Dole, foi mais uma provocação do que uma mudança de política. Trump vem criticando muito insistentemente as restrições comerciais da China e determinadas práticas invasivas de Beijing. 
Não poderá esquecer, porém, que Beijing é o maior comprador da dívida norte-americana e que boa parte do crescimento do mercado consumidor americano depende das importações da China. 

Atualmente, nota-se que os Estados Unidos jogam um jogo de curto prazo, condicionado pelas idiossincrasias de cada administração, enquanto a Rússia e a China jogam no longo prazo, sem a pressão do calendário eleitoral e das disputas políticas internas. Assim, pode-se identificar uma tendência de que esses dois países, Rússia e China, se comportem com cautela nos momentos em que os Estados Unidos estão sob um governo mais assertivo, como o de Trump, esperando os momentos de governos mais fracos em Washington, para avançar em alguns passos em suas agendas. 

A Europa pós-Brexit, a esta altura, está à procura de um papel mais afirmativo no mundo. Busca evitar outras ameaças como poderão ser uma eventual saída da Itália (pouco provável, mas não impossível) e da Grécia, que poderá voltar à agenda. Em nenhum dos países da Europa Ocidental parece prevalecer a determinação que engendrou a União Europeia e transformou o mundo. 

É crucial para o Reino Unido guardar a força, o prestígio e a independência da praça financeira de Londres, ameaçada pelo centralismo europeu, ortodoxo de origem germânica do Banco Central Europeu. 

É crucial também evitar a invasão de refugiados, sobretudo islâmicos. O Reino Unido parece retornar, assim, a seus imperativos históricos de guardar uma certa distância da Europa Continental e de, eventualmente, acirrar um país contra o outro. Sempre comento que o Brexit não me surpreendeu. O que me surpreendeu, na realidade, foi a entrada do Reino Unido na União Europeia. Nada mais forte do que as tendências históricas e geoestratégicas de cada país para definir as suas linhas de política. 

A tendência de Trump, a meu ver, será a de reforçar a aliança anglo-saxã (Reino Unido, EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia) que dá as cartas no mundo desde a queda do Império Napoleônico. A visita de Theresa May, amanhã, a Washington, é prova da prioridade dessa aliança, que derrotou duas vezes o poder germânico, derrotou a União Soviética e agora enfrenta o Islã radical. 

O Japão, por sua vez, não deverá acarretar maiores desafios para a Administração Trump , cuja tendência será muito provavelmente no sentido de fortalecer as posições defensivas de Tóquio no que se refere às pretensões expansivas da China no Mar da China, objeto de frequentes litígios. 

Quanto ao combate ao radicalismo islâmico, o que deve-se esperar é um comprometimento maior do poderio militar dos EUA. Liderar pela frente e não por trás, como foi a política empregada por Obama. Certamente não será essa última a política do futuro Secretário de Defesa, conhecido pela alcunha de “Cachorro Louco”. 

No que diz respeito à América Latina, os olhos da futura administração estarão prioritariamente voltados para o México e para os temas migratórios em geral. O muro, que Trump decidiu, assinou o instrumento ontem, o decreto ontem, Executive Order, que decidiu construir na fronteira, para evitar o influxo dos “males” proveniente do país (emigrantes ilegais, drogas, dinheiro sujo, violência entre outros) é, acredito que seja mais um símbolo do que uma realidade possível. Curiosamente, diz-se que o México estaria sim, disposto a construir e pagar o muro para evitar o influxo de norte-americanos que eventualmente desejam escapar do radicalismo trumpista. O que se pode prever, a essa altura, é uma concentração maior de interesses do México na América do Sul, algo que não é necessariamente favorável ao Brasil, mas que poderemos discutir eventualmente. 

O Brasil, a esta altura, infelizmente, está longe do radar da futura administração. Nos meios empresariais americanos é evidente, porém, a preocupação com a crise brasileira e com o desempenho da nossa economia. Caberá eventualmente ao Brasil configurar e propor um projeto de ativação das relações bilaterais, assim que sejamos capazes de saber o que queremos, se é que queremos alguma coisa. 

Em recente artigo, o brasilianista Albert Fishlow assinalou com muita propriedade, que, em seu discurso de posse, no espírito agressivo de outro presidente americano a quem ele tem sido comparado, Andrew Jackson, Trump rejeitou a Ordem anterior, em direção a um novo populismo. Não fez referência à recuperação econômica após a Grande Recessão, não lembrou um papel positivo do sistema financeiro, não deu crédito a cooperação com os aliados por meio do Tratado do Atlântico Norte e tampouco se referiu aos tratados presentes, como o Acordo Nuclear com o Irã e os relativos a mudanças climáticas. 

Ao contrário, segue Fishlow, o presidente insistiu nos seus temas de campanha, como a promessa de denegar o pântano político de Washington, o que incluiria tanto a ala republicana quanto a democrata. Enfatizou o retorno da produção das indústrias nacionais, com maciços instrumentos e infraestrutura. Ao enfatizar, no discurso, o tema da América em primeiro lugar, America First, o discurso reiterou a necessidade, ainda estou com Fishlow, o discurso reiterou a necessidade de trazer de volta a riqueza investida no exterior e a garantia de novos empregos para reduzir as importações. Isso, comentou o autor, lembrou a postura de Charles Lindbergh nos Anos 30 e do isolacionismo que ele apoiava. 

Eu volto a perguntar se nós estaríamos diante de uma espécie de nacional-capitalismo que poderia, como o nacional-socialismo, conduzir a desastres incalculáveis. E aqui encerro. O resultado de todas essas variáveis, bem poderá ser, na expressão de Ian Bremmer, o mundo do G0. Um mundo sem lideranças globais, seja em cooperação, seja em confrontação. Seria um contrassenso histórico, mas não é impossível que aconteça, e isso tornaria ainda mais prováveis os conflitos. A esta altura, é praticamente impossível prever o futuro, sobretudo, que ainda não aconteceu. De toda forma, como dizia sempre um amigo meu, americano, que trabalhava com political forecasting. No meu negócio, dizia ele, o importante não é fazer previsões corretas, mas sim previsões frequentes.

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