Esta coluna publica, com especial prazer, as observações do Embaixador Luis Felipe Seixas Correa a respeito da ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos e suas repercussões internacionais.
A política é
surpreendente. A vitória de Donald Trump nas recentes eleições
presidenciais americanas comprova a imprevisibilidade do futuro. Ele
teve a intuição de aproveitar o ressentimento acumulado nos últimos
anos, tanto dos setores do big business norte-americano,
indústria, comércio, finanças, com as políticas postas em prática
pela Administração Obama, quanto da classe média baixa e branca, e
logrou seu objetivo com muita clareza. Seu discurso de posse revela
uma acentuada dose de voluntarismo. Muitas palavras, muitas
generalidades, pouca ou nenhuma indicação de como poderá
implementar os seus desígnios. Fica a sensação de que Trump advoga
uma espécie de nacional-capitalismo, e fica a preocupação de que
poderá provocar conflitos e confrontos dos Estados Unidos no mundo.
Seu lema, America First, é algo que não condiz com o
discurso político do Pós-Guerra, nem com a Carta da ONU, que
estabelece o Princípio da Igualdade Soberana das Nações. São
intenções que se cumprem, mas que não se enunciam, jamais, assim
tão claramente.
O que pensam os adeptos de Trump é que a política
externa do Governo Obama caracterizou-se por uma retração da
presença norte-americana no mundo, pela aversão ao emprego do
poderio militar, pela redução dos gastos com Defesa, pela rejeição
da tradicional ideia de serem os Estados Unidos uma força moral no
mundo, pela busca de algum diálogo com o mundo islâmico e pela
tentativa permanente de evitar que crises internacionais perturbassem
a promoção da agenda doméstica do Governo Obama, que sempre foi a
sua prioridade.
É verdade que a política externa conduzida por
Obama terá sido aproveitada pela Rússia e Putin pôde assumir a
liderança em todas as frentes geoestratégicas de seu interesse,
principalmente na Europa do Leste e no Oriente Médio. É também
certo que a retirada das forças norte-americanas do Iraque, que já
se encontrava razoavelmente pacificado e sob a influência direta dos
Estados Unidos, criou um vácuo, que veio pouco depois a ser
preenchido pelo ISIS e pelo Irã. Ao Irã, Obama proporcionou a
preservação do seu programa nuclear e o fim das sanções, o
desbloqueio dos bens. Portanto, com uma significativa vantagem
estratégica e econômica para os iranianos. Na Líbia, a
interpretação liderada pelos Estados Unidos, mas liderada na
expressão muito interessante que passaram a usar, to lead from
behind, liderada por trás, pelos Estados Unidos, gerou também
um vácuo que veio a ser ocupado pelo ISIS. E, eu ouvi também esse
comentário em recente viagem pelos Estados Unidos, muita reação ao
reatamento com Cuba, que terá dado sobrevida e prestígio renovado
ao castrismo, alentando a esquerda latino-americana, justamente no
momento em que se encontra combalida pelo enfraquecimento de suas
posições no Brasil, na Argentina, na Bolívia e pelo progressivo
esfacelamento da Venezuela.
Diante dessas preocupações, não é de
estranhar que o apoio da franja mais nacionalista dos Democratas
tenha se sentido defraudada, tanto mais porque a candidata do
partido, Hillary Clinton, tendo sido Secretária de Estado, foi
considerada a responsável por esses, que muitos consideram erros
cruciais da política do Obama. Não creio que essa propalada
interferência russa nas eleições norte-americanas seja mais do que
um bode expiatório lançado pelos Democratas para justificar a
derrota e constranger Trump. Trump já declarou, repetidas vezes, que
não tem motivos para antagonizar Putin, mas negou maior proximidade
com o presidente russo. Na prática, pode-se prever que tenderá a
manter boas relações com a Rússia, principalmente em torno daquela
que será a prioridade da política externa norte-americana no seu
início, o combate ao terrorismo islâmico. A cooperação com a
Rússia é indispensável para esse objetivo, mas dificilmente se
tratará mais do que uma aliança tática em um teatro definido, e,
sobretudo, uma “afinidade”, entre aspas, que enfraquece a União
Europeia e protege a Rússia de novos episódios como a Ucrânia.
Trata-se, sob todos os aspectos, de uma aproximação, creio eu, que
é surpreendente, mas que não deixa de ter motivações táticas.
Putin é um líder forte, que traz consigo duas heranças também
fortes, a do comunismo, que acabou, e a da antiga Rússia Imperial,
que não acabará jamais. Seu comportamento atualmente vai pelo lado
da Rússia Imperial, algo que ficou evidente na reação à tentativa
da Aliança Ocidental de cooptar a Ucrânia e chegar perto demais da
Rússia. Mutatis mutandis, foi o que aconteceu inversamente na
Crise dos Foguetes de Cuba, onde os Estados Unidos traçou uma linha
dura e se preparou para um conflito nuclear com a então União
Soviética. Os Estados Unidos ganharam no conflito de Cuba e a Rússia
ganhou na Ucrânia. Ambas as crises demarcaram os limites a que podem
chegar as ameaças a uma e outra superpotência nuclear.
Trump, por
sua personalidade, parece entender bem esse tipo de reações. Veio
praticando ao longo de toda sua vida uma espécie de capitalismo
agressivo, que ataca até o momento em que percebe os limites da
força do competidor. Vai seguir, muito provavelmente, essa norma nas
relações com a Rússia de Putin, que, diga-se de passagem, com o
lento desgaste da Sra. Merkel, é hoje, talvez, o único grande líder
europeu, independentemente do que possamos pensar das suas políticas.
Mais recentemente, seu envolvimento no conflito da Síria revelou
determinação e capacidade de arregimentar forças para buscar
transformar uma realidade que ameaçava os interesses estratégicos
da Rússia. Eu acho que a evolução das relações entre os Estados
Unidos e a Rússia dependerá, fundamentalmente, de como progrida a
luta contra o terrorismo islâmico. Se o ISIS for derrotado pelos
dois países em coordenação, virá a questão da partilha das
esferas de influência na Síria e no restante da região, e muitas
outras situações que poderão colocar os dois partidos, os dois
países, em situações opostas.
Pelo que eu pude observar, em
conversas com diversos interlocutores em recente viagem aos Estados
Unidos, há duas correntes de opinião entre os eleitores
republicanos de Donald Trump. Uns esperam que ele seja na Casa Branca
o Trump de sempre: radical, agressivo, movido por suas próprias
opiniões, centralizador e convencido de que a distância entre a
administração pública e os grandes negócios é muito reduzida: um
capitalista clássico! Outros acreditam que a fanfarra de campanha
não passa de fanfarra de campanha mesmo e que, no poder, Trump será
contido pelo establishment do Partido Republicano: direita
sim, ma non troppo! Outros ainda acreditam que o
vice-presidente Mike Pence, por seu tino político e seriedade, seria
uma garantia de que, na hipótese de um eventual impeachment de
Trump, não haverá necessidade, como houve no caso de Nixon, de se
afastar o vice e eleger outro.
Em recente artigo no New York
Review of Books, encontrei uma apreciação notável: “Trump é
um improvisador, um ator, um criador de novas realidades, um homem
prejudicado pelo seu próprio narcisismo, um músico, um dançarino
mágico. Nem ele mesmo sabe ou pode imaginar o que vai acontecer”.
Isso, para o presidente do país mais poderoso do mundo, é muito
mais do que preocupante: é assustador! Minha impressão é de que,
tanto os Republicanos quanto os Democratas oscilam entre um e outro
ponto de vista. Alguns otimistas, outros menos. Muitos pessimistas,
uns poucos menos. Todos, porém, parecem acreditar que boa parte da
vitória de Trump derivou da reação negativa à personalidade de
Hillary e aos pontos obscuros de certas práticas do casal Clinton.
Muita gente acredita que Joe Biden teria ganho. O que se pode
perceber é uma imensa ansiedade. Para onde vai o país? Como liderar
o chamado “mundo livre” com uma dose intensa de radicalismo
personalista? Como será Trump capaz de se relacionar com o mundo,
com as lideranças nacionais na Europa, na Ásia, e na América
Latina?
Um enorme problema para Trump será a China, outra das
facetas que devemos abordar nesse encontro e sua iniciativa de falar
pessoalmente com a Presidente de Taiwan foi um expresso desafio ao
equilíbrio das relações entre os dois países. Um gesto que havia
sido negociado com o lobby de Taiwan em Washington, liderado
pelo ex-senador e ex-candidato a presidente republicano, Robert Dole,
foi mais uma provocação do que uma mudança de política. Trump vem
criticando muito insistentemente as restrições comerciais da China
e determinadas práticas invasivas de Beijing.
Não poderá esquecer,
porém, que Beijing é o maior comprador da dívida norte-americana e
que boa parte do crescimento do mercado consumidor americano depende
das importações da China.
Atualmente, nota-se que os Estados Unidos
jogam um jogo de curto prazo, condicionado pelas idiossincrasias de
cada administração, enquanto a Rússia e a China jogam no longo
prazo, sem a pressão do calendário eleitoral e das disputas
políticas internas. Assim, pode-se identificar uma tendência de que
esses dois países, Rússia e China, se comportem com cautela nos
momentos em que os Estados Unidos estão sob um governo mais
assertivo, como o de Trump, esperando os momentos de governos mais
fracos em Washington, para avançar em alguns passos em suas agendas.
A Europa pós-Brexit, a esta altura, está à procura de um papel
mais afirmativo no mundo. Busca evitar outras ameaças como poderão
ser uma eventual saída da Itália (pouco provável, mas não
impossível) e da Grécia, que poderá voltar à agenda. Em nenhum
dos países da Europa Ocidental parece prevalecer a determinação
que engendrou a União Europeia e transformou o mundo.
É crucial
para o Reino Unido guardar a força, o prestígio e a independência
da praça financeira de Londres, ameaçada pelo centralismo europeu,
ortodoxo de origem germânica do Banco Central Europeu.
É crucial
também evitar a invasão de refugiados, sobretudo islâmicos. O
Reino Unido parece retornar, assim, a seus imperativos históricos de
guardar uma certa distância da Europa Continental e de,
eventualmente, acirrar um país contra o outro. Sempre comento que o
Brexit não me surpreendeu. O que me surpreendeu, na
realidade, foi a entrada do Reino Unido na União Europeia. Nada mais
forte do que as tendências históricas e geoestratégicas de cada
país para definir as suas linhas de política.
A tendência de
Trump, a meu ver, será a de reforçar a aliança anglo-saxã (Reino
Unido, EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia) que dá as cartas
no mundo desde a queda do Império Napoleônico. A visita de Theresa
May, amanhã, a Washington, é prova da prioridade dessa aliança,
que derrotou duas vezes o poder germânico, derrotou a União
Soviética e agora enfrenta o Islã radical.
O Japão, por sua vez,
não deverá acarretar maiores desafios para a Administração Trump
, cuja tendência será muito provavelmente no sentido de fortalecer
as posições defensivas de Tóquio no que se refere às pretensões
expansivas da China no Mar da China, objeto de frequentes litígios.
Quanto ao combate ao radicalismo islâmico, o que deve-se esperar é
um comprometimento maior do poderio militar dos EUA. Liderar pela
frente e não por trás, como foi a política empregada por Obama.
Certamente não será essa última a política do futuro Secretário
de Defesa, conhecido pela alcunha de “Cachorro Louco”.
No que diz
respeito à América Latina, os olhos da futura administração
estarão prioritariamente voltados para o México e para os temas
migratórios em geral. O muro, que Trump decidiu, assinou o
instrumento ontem, o decreto ontem, Executive Order, que
decidiu construir na fronteira, para evitar o influxo dos “males”
proveniente do país (emigrantes ilegais, drogas, dinheiro sujo,
violência entre outros) é, acredito que seja mais um símbolo do
que uma realidade possível. Curiosamente, diz-se que o México
estaria sim, disposto a construir e pagar o muro para evitar o
influxo de norte-americanos que eventualmente desejam escapar do
radicalismo trumpista. O que se pode prever, a essa altura, é uma
concentração maior de interesses do México na América do Sul, algo que não é necessariamente favorável
ao Brasil, mas que poderemos discutir eventualmente.
O Brasil, a esta
altura, infelizmente, está longe do radar da futura administração.
Nos meios empresariais americanos é evidente, porém, a preocupação
com a crise brasileira e com o desempenho da nossa economia. Caberá
eventualmente ao Brasil configurar e propor um projeto de ativação
das relações bilaterais, assim que sejamos capazes de saber o que
queremos, se é que queremos alguma coisa.
Em recente artigo, o
brasilianista Albert Fishlow assinalou com muita propriedade, que, em
seu discurso de posse, no espírito agressivo de outro presidente
americano a quem ele tem sido comparado, Andrew Jackson, Trump
rejeitou a Ordem anterior, em direção a um novo populismo. Não fez
referência à recuperação econômica após a Grande Recessão, não
lembrou um papel positivo do sistema financeiro, não deu crédito a
cooperação com os aliados por meio do Tratado do Atlântico Norte e
tampouco se referiu aos tratados presentes, como o Acordo Nuclear com
o Irã e os relativos a mudanças climáticas.
Ao contrário, segue
Fishlow, o presidente insistiu nos seus temas de campanha, como a
promessa de denegar o pântano político de Washington, o que
incluiria tanto a ala republicana quanto a democrata. Enfatizou o
retorno da produção das indústrias nacionais, com maciços
instrumentos e infraestrutura. Ao enfatizar, no discurso, o tema da
América em primeiro lugar, America First, o discurso reiterou
a necessidade, ainda estou com Fishlow, o discurso reiterou a
necessidade de trazer de volta a riqueza investida no exterior e a
garantia de novos empregos para reduzir as importações. Isso,
comentou o autor, lembrou a postura de Charles Lindbergh nos Anos 30
e do isolacionismo que ele apoiava.
Eu volto a perguntar se nós
estaríamos diante de uma espécie de nacional-capitalismo que
poderia, como o nacional-socialismo, conduzir a desastres
incalculáveis. E aqui encerro. O resultado de todas essas variáveis,
bem poderá ser, na expressão de Ian Bremmer, o mundo do G0. Um
mundo sem lideranças globais, seja em cooperação, seja em
confrontação. Seria um contrassenso histórico, mas não é
impossível que aconteça, e isso tornaria ainda mais prováveis os
conflitos. A esta altura, é praticamente impossível prever o
futuro, sobretudo, que ainda não aconteceu. De toda forma, como
dizia sempre um amigo meu, americano, que trabalhava com political
forecasting. No meu negócio, dizia ele, o importante não é
fazer previsões corretas, mas sim previsões frequentes.