Joaquim Francisco de Carvalho *
Em linha com o professor Norberto Bobbio, num país bem organizado pode-se distinguir os conceitos de Espaço privado e Espaço público em função dos objetivos visados pelas entidades, estabelecimentos ou empresas que neles operam :
Do lado do espaço
privado ficam as corporações e empresas industriais; estabelecimentos comerciais
e de serviços; corretores e instituições financeiras, etc. O objetivo preferencial
dessas corporações e estabelecimentos é o de gerar lucros para os seus controladores.
Do lado do
espaço público ficam as entidades voltadas para atividades não lucrativas, tipicamente
estatais, como a diplomacia, a segurança nacional e a polícia, além daquelas de
caráter social, como a educação primária e a saúde pública. Neste espaço também
estão alguns serviços públicos (utilities), que são vitais tanto para as
corporações e empresas que operam no espaço privado, como para aquelas que
estão no próprio espaço público. Por isto, as utilities devem respeitar certos princípios éticos, que as afastem
dos embates por lucros que caracterizam o espaço privado. Aí temos, verbi gratia, o suprimento de eletricidade, que, num país como o Brasil, entra na
classe dos monopólios naturais. De
fato, nas cidades deste país, as tarifas de eletricidade são impostas por um único
fornecedor (Light, no Rio; Eletropaulo, em São Paulo, etc.)
Seria uma lapalissade acrescentar que a eletricidade
é indispensável para a produção industrial; as comunicações; o comércio; a
pesquisa científica; os hospitais e laboratórios; a conservação dos alimentos;
o abastecimento; o lazer; enfim, para tudo. Os preços da eletricidade impactam todos
os custos da economia, acabando por influir na qualidade de vida das pessoas.
Por conseguinte, tarifas elétricas não devem ser formadas no espaço privado, porque
o objetivo preferencial das empresas deste espaço é a sua própria rentabilidade
– e não a saúde financeira de outras empresas ou a qualidade de vida dos
consumidores.
Ademais, em
virtude de sua ampla interface com os
demais setores, o setor elétrico é um indutor de transformações modernizadoras,
que vão desde novas tecnologias e processos produtivos, até a melhoria da
qualidade e confiabilidade de produtos e serviços, a eficiência da gestão
empresarial, a formação de recursos humanos, etc.
No caso
brasileiro, ao lado das considerações acima, convém lembrar um aspecto ético essencial,
relacionado às atuais tendências de se passar para o espaço privado o que resta
do sistema hidrelétrico.
Trata-se
do seguinte: até a década de 1.990, as
tarifas de eletricidade eram estruturadas no contexto do espaço público, de
forma a permitir que o investidor (o Estado, no caso) cobrisse todos os custos
operacionais (pessoal, manutenção e reposição de equipamentos, impostos, etc.)
e recuperasse em trinta anos o capital investido na construção das hidrelétricas,
linhas de transmissão e redes de distribuição – além de se capitalizar para expandir o sistema
proporcionalmente ao crescimento previsível da economia.
As
tarifas eram baratas porque a idade média do parque gerador brasileiro aproximava-se
dos acima referidos trinta anos, portanto seu valor contábil (que entra na
formação das tarifas) é muito reduzido.
Daí
resultava uma baixíssima incidência do capital sobre os custos da eletricidade gerada,
permitindo que se estruturasse uma tarifa de suprimento média, que dava, às
distribuidoras, margem para cobrar tarifas acessíveis para as microempresas e até
para os consumidores de baixa renda.
Com
a desregulamentação e a artificial transferência do sistema para o espaço
privado, essa vantagem desaparece, porque as tarifas passam a ser formadas visando
a lucros. Em
consequência, os consumidores residenciais já encontram dificuldades para pagar
as suas contas de eletricidade, o que retém a demanda por muitos tipos de bens de
consumo. Por outro lado, já é grande o número de pequenas e médias empresas expulsas
do mercado, devido à alta incidência das tarifas de eletricidade em seus custos
de produção.
Parece
claro que esses movimentos provocarão um retrocesso da economia brasileira,
retardando o desenvolvimento social e mergulhando o país numa penosíssima
situação, da qual só emergirá quando os governantes tiverem visão de estadistas
e perceberem a importância do espaço público, numa economia ainda frágil como a
brasileira. Por outras palavras, é indispensável que se respeite o direito das
pessoas e das classes produtoras, de receber eletricidade a preços compatíveis
com os custos de geração do sistema hidrelétrico, que deveriam ser baixos
porque, como foi explicado linhas acima, as usinas estão no fim do prazo de
depreciação contábil, de sorte que a eletricidade que elas produzem (energia
“velha”) permite que se componham tarifas favoráveis ao setor produtivo e à
população.
Em
suma, receber energia barata decorre do direito natural dos consumidores, pois
foram esses consumidores que pagaram tarifas que incluíam parcelas destinadas a
amortizar os financiamentos contratados para construir as hidrelétricas e os sistemas
de transmissão e distribuição. Por esta razão, o conjunto dos consumidores (pessoas
físicas e empresas) adquiriu o que alguns juristas denominam “direitos difusos
de propriedade” sobre os ativos do sistema elétrico.
Para
respeitar esses direitos, o Estado deveria obrigar-se a vender eletricidade a
preços calculados com base no valor depreciado do capital investido na
construção do sistema. Isto seria viabilizado pela criação de uma entidade de
direito público (um pool), que
compraria a energia das geradoras e revenderia às distribuidoras, de acordo com
os seguintes princípios:
•
O pool seria operado por um núcleo
técnico, submetido a uma diretoria não política, designada, de forma paritária, por entidades representativas das empresas geradoras e
distribuidoras de energia elétrica – e, também, por associações de consumidores
residenciais e entidades de classe da indústria (CNI, Fiesp. Firjan, etc.).
•
A energia das geradoras seria comprada pelo pool
a preços calculados com base em custo
comprovado mais lucro previamente acordado. As diferenças
entre os custos das três fontes (hidroelétrica, termelétrica e eólica) seriam
compensadas para se formar uma tarifa média de suprimento às distribuidoras.
Estas entregariam a eletricidade aos consumidores, também a custo demonstrado mais lucro previamente acertado.
__________________________
* Joaquim Francisco de Carvalho é doutor em energia pela
USP. Foi pesquisador associado ao Instituto de Energia e Eletrotécnica daquela
universidade, coordenador do setor industrial do ministério do planejamento,
diretor da Nuclen (atual Eletronuclear), engenheiro da CESP e presidente do
IBDF (atual Ibama).
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