domingo, 20 de fevereiro de 2022

A Volta de Tucídides




O que se contempla hoje no âmago da crise que envolve a Ucrânia tendo por protagonistas os Estados Unidos e a Russia revela um confronto em diversas dimensões: 

A dimensão política abrange objetivos escancarados bem como subterrâneos. Enquanto Washington  constrói e divulga em maciça campanha pela imprensa mundial a perene imagem de defensora das liberdades ocidentais, dos Direitos Humanos (apesar de incidentes internos)  e da autodeterminação (apesar de incidentes externos), já a peleja subterrânea onde atua a CIA, esta é bem mais sútil.

Langley*, apesar de notória e histórica imprecisão de suas estimativas e previsões, evidenciada em outros episódios internacionais (Vietnam, Iraque, Síria, Afeganistão, etc...), vem abastecendo o governo Biden com evidencias de iminente invasão russa. 

A agência dos espiões não parece desconfiar que. ao "revelar" os planos de invasão russa, arrisca denunciar a origem de suas fontes secretas embutidas na intimidade do aparato inimigo, assim caindo nas armadilhas preparadas por Moscou. Segundo a literatura sobre a matéria, não seria a primeira vez... 

Além do objetivo de conquistar a Ucrânia como mais uma peça para o dominó OTAN, os Estados Unidos tem outros objetivos, reforçar, pelo receio criado,  a coesão europeia, esta fragilizada pelo Brexit e pela crescente dissintonia da politica externa de Washington vis-a-vis os objetivos do eixo Paris-Berlim, este vendo na crescente intensidade do comercio sino-russo. China, hoje, é o maior parceiro comercial da Europa, enquanto a Russia é a única fonte alternativa, a custo confortável, de energia e aquecimento. 

"Last but not least", não deve ser desprezado o objetivo eleitoral de Biden. Face a sua possível perda do controle sobre Câmara e Senado nas eleições que se avizinham, surge a oportunidade de conter ou reverter a  ameaça ao tênue domínio Democrata no Senado  americano. Enrolar-se na bandeira, a "Star and Stripes", é tática já usada no passado quando das eleições. Vide Clinton e  a guerra do Kosovo... 

Já, do lado russo, a motivação é bem conhecida. Não evolve ganho territorial, cujo benefício seria de perene alto custo, seja econômico, militar ou politico. Seus objetivos já foram bem delineados; a neutralização de Kiev, seguindo o modelo finlandês. 

Ainda, Moscou insiste no cumprimento dos acordos de Minsk, celebrado entre as partes conflitantes e  com a participação arbitral europeia,  restabelecendo os direitos tradicionais que os cidadãos de russo-ucranianos gozavam antes da alteração constitucional causada pela "revolta da praça Maidan".                A não cumprir-se os termos do Tratado assinado, não será descartável a possibilidade de anexação por Moscou das áreas separatistas de Lugansk e Donetsk.

Moscou também aproveita-se da ameaça decorrente da expansão da OTAN na Ucrânia traçando um paralelo com o contencioso Taiwan-China. Manifestações de apoio já provieram de  Pequim.

Quanto ao cenário institucional  internacional deve ser lembrado que tanto a Russia quanto a China possuem o direito de veto nas Nações Unidas, dificultando a formação de consenso internacional que lhes seja  hostil.

Uma avaliação isenta, e aqui vale reportar-se às observações do notável Henry Kissinger reproduzidas nesta coluna, difícil justificar uma política de permanente tensão contra a Rússia, como se líder do Império Soviético ainda fosse. Sob uma ótica racional e isenta, deixando ambas as partes suas pretensões dominadoras hoje não mais realista, mais relevantes serão os fatores de colaboração entre Washington e Moscou. Hoje, a perene ameaça do Terrorismo  e o perigo potencial dos "rogue states"  nucleares que proliferam, como a Coréia do Norte, merece a atenção coordenada das grandes potencias. 

A emergência da China como o verdadeiro rival dos Estados Unidos deveria levar Washington a atenuar o contencioso com Moscou, abrindo, pelo contrário,  as portas à crescente interação. A persistir nesta política de cerco, compreensível até  1990 e não mais em 2021, a tensão internacional tenderá a  aumentar.   

Sob crescente pressão psicológica, os Estados Unidos  se veem ameaçados de perder sua, até ontem,  inconteste liderança global. Não mais poder impor mas, sim, negociar. A insegurança psicológica e política decorrente desta inversão estratégica, tem, por perigosa consequência, induzir a contestação em vez da aproximação. 

Sob a liderança norte-americana caminha-se para uma nova "Armadilha de Tucídides", Washington  por Esparta, Pequim por Atenas. Ou, ainda, adentra-se o conflito permanente de "1984" onde Ocidente e Oriente tem por destino o conflito infindável. Urge corrigir o rumo.  



* Sede da CIA

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